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CAPA JERUSALEM DESTRUIDA2.jpg
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Como é, já fuzilaram o homem?

 

           

          A alegria explodiu no rosto de Brísio. Pulou da cadeira. Sorveu a aguardente em dois copos e dançou, desajeitado, balançando a barriga muxibenta.

            — É preciso comemorar.

            Sorveu de uma vez só o copo inteiro de cachaça e continuou a dançar. Não havia música nenhuma. O ritmo era determinado pela súbita alegria que tomou conta do velho militante; a melodia estava na nota seca que acabara de ouvir no rádio...

            — Venha, homem, é preciso comemorar.

            Já chorava de alegria. Ficou sério. Dedo em riste, sentenciou:

            — Ainda não estou satisfeito. É preciso fuzilar o desgraçado!

            — Mas, Brísio, ele foi deposto, já não tem poder nenhum. Basta, não?

            — Não, não basta! Fazer o que fez com o camarada Stalin. Quero ver o desgraçado diante do pelotão de fuzilamento.

            Fazia muito tempo que Tarquínio não tinha recordações como essa, nostalgias da militância política, flashes longínquos já quase imperceptíveis. Antes que tudo virasse um angu de caroço, um nó cego e ele no meio de não sei quantas encruzilhadas sem saber para onde ir. Na época em que era estalinista puro e duro, tudo parecia mais simples, menos emaranhado. Preto no branco, disciplina, ordem, fila indiana. Sabia distinguir um reacionário a três quilômetros de distância. Batia o olho, ouvia duas ou três palavras e já sabia com quem estava falando. Sem complicações, sem desvios e masturbações mentais. Como o velho Brísio, Tarquínio não precisava de música para dançar, bastava a notícia.

            Baratinou tudo. Para o mal dos pecados, as fotografias começaram a se mexer nas paredes, antes que saltassem para o chão como se esquecidos de que deviam estar petrificadas, mortas. E não se contentavam com isso. Atormentavam a alma de Tarquínio, riam de suas preocupações, colocavam a língua para fora, faziam caretas, davam até piruetas, xingavam deus e todo mundo, quando não faziam atos obscenos. Misericórdia! Uma vez, durante uma recepção numa dessas monarquias que ainda existiam por aí, sem que nem para quê, o príncipe consorte saiu de sua pose fixa, arregalou os olhos e, sem mais nem menos, agarrou por trás sua real cara metade, penetrando-lhe aos solavancos seu membro em meia ereção. Uma voz dizia baixinho no ouvido de Tarquínio, e creio que saía da boca do retrato de sua bisavó:

            — Castigo, nobre nunca fica de pau duro.

            E o príncipe:

            — Vem cá, minha rainha!

            A recepção prosseguiu. Discursos, salgadinhos, vinhos, cerveja ge­lada. Tarquínio não ouvia bem o que as pessoas diziam porque as fotografias em sua volta não lhe davam sossego. Havia muito tempo que não faziam um alvoroço tão grande. No entanto, ele mesmo, há tempos, estava desconfiado da calma­ria, da quietude e da fixidez próprias dos retratos que sabem se com­portar como tal. Então, ele podia fazer o balanço de sua vida, como faz todo mundo, sem interferência, esmiuçando passagens agradáveis, autocensurando o que não lhe interessava ou era perigoso relembrar. Memória seletiva, história com pé e cabeça. Há historiadores que abusam disso.    

            Realmente, nunca se teve notícias de Brísio tão contente. O sorriso largo em luta contra as rugas de seu rosto, os olhos brilhando como se fossem de um adolescente na expectativa da primeira trepada. Há mais de uma semana estavam os dois escondidos naquele fim de mundo, tapera velha, ratos passeando pelo piso carcomido, alimentando-se com arroz e ovo todos os dias e, por felicidade, uma garrafa de cachaça. Não se sabe de que marca. E havia muita firmeza ideológica, férrea, nada de vacilações; estavam ali, puros e duros, inflexíveis como as fotografias que se prezam. A notícia no rádio foi como se abrissem para Brísio as portas do Paraíso.

            Três meses depois da notícia da queda de Nikita Khruschev, já desconfiado dos rumos revisionistas tomados por seu sucessor, Leonid Breznev, Brísio morreu com uma úlcera supurada. Os olhos esbugalhados de dor, contorcendo-se na cama, balbuciou suas últimas palavras:

            — Como é, já fuzilaram o homem?

            No enterro, Tarquínio ficou de longe. A polícia na certa estaria por ali, fotografando e anotando nomes. Sepultamento de clandestino sempre foi assim. Os amigos à distância, fazendo de conta que visitavam outras covas, olhando ressabiados, pelo canto dos olhos. Ele viu, numa dessas mi­radas furtivas, a filha mais velha de Brísio fazer o sinal da cruz e lhe pareceu — horror! — que rezava baixinho. Uma falta de respeito com um estalinista de corpo e alma que sempre desejou ver o último padre enforcado nas tripas da última irmã de caridade. Tarquínio imaginou o amigo revirando-se no caixão.

            Havia outros enterros. Padres por todos os lados, falando de vida eterna e de corpos virando cinza ou pó. Sem cremação (condenada pela Igreja) e com tanta umidade, como era possível uma coisa ou outra? Os olhos estalinistas de Tarquínio detectavam inimigos declarados, revi­sionistas, reformistas, burgueses e uma infinidade de pequenos burgueses povoando o cemitério, por cima e por baixo da terra. Para ele, não existia coisa pior do que a pequena burguesia. Na antiga União Soviética, nem fuzilando Stalin conseguiu-se acabar com ela. Atacou-lhe a depressão. No cemitério havia muitas cruzes. O símbolo lhe per­seguia desde a infância. Veio-lhe o pensamento de que, sem o materialismo dialético, estaria ainda car­regando a cruz dependurada no pescoço, exalando complexo de culpa por todos os poros, sucumbindo à ditadura da família. Melhor a do proletariado?

            Esconjurou a pergunta traiçoeira vinda não se sabe de onde.

            Sua mãe não deixava por menos. Protestante era agente do capeta. Comunismo, "não diga o nome!", era aquilo, coisa do diabo. Foi na cozinha de sua casa, tomou-lhe das mãos o livro de Plekanov sobre o materialismo dialético e rasgou-o com fúria, antes de deixar cair a faca e a cebola que cortava.

            — Prefiro ver meu filho morto do que ser aquilo!

            "O ovo traz em si a essência de sua destruição, que é o pinto." A redenção, após o espetáculo materno. O materialismo dialético tinha resposta para tudo. Politzer explicava tão bem, com tanta certeza, com a convicção de uma testemunha de Jeová dissertando sobre a Bíblia, de Dona Lalá contando a estória do menino que que­ria esvaziar o mar com um dedal e colo­car toda a água num buraco feito com seu dedo mindinho na praia. Santo Agostinho não acreditou. Ah, mas desvendar o mistério da Santíssima Trindade era ainda mais difícil, jurava Dona Lalá, de catecismo em punho, certa de que o garotinho tinha dito aquilo. Foi na adolescência que Tarquínio livrou-se de tudo isso e estava contente. A roda da História movia-se inexoravelmente conforme a cartilha; revi­sionistas e liberais eram passíveis de fuzilamento, Perestroika e Glasnost ainda não existiam no vocabulário, o urso verme­lho protegia-nos da águia capitalista, o dragão chinês, conduzido pelo Grande Timoneiro, haveria de esmagar com suas patas e esbaforir seu fogo, reduzindo a cinzas os derradeiros exploradores do planeta. E, alívio, as fotografias ainda não se moviam nas paredes, espalhando dúvidas sobre tantas certezas. A dita­dura do proletariado, antes que se pudesse gozar as delícias do comunismo, a sociedade sem classes, sem Estado. Só faltava dar a par­tida. E Tarquínio sentia-se como uma peça do motor de arranque.

            De vez em quando alguns lampejos de dúvida. Um circuito qualquer, fora do lugar, detonava o alarme, uma alfinetada dentro de seus miolos, antecipando as fotografias que tempos depois não lhe dariam mais sossego, argumentando, questionando, dizendo que o ovo do Politzer estava choco, que o pinto da revolução tinha gorado, que não veríamos nunca o galo de briga da classe operária, que o tigre de papel menosprezado pelo camarada Mao tinha dentes nucleares mais afiados do que imaginávamos. Não seria possível dar a partida, o motor de arranque estava emperrado, quem sabe se pela ferrugem do sectarismo.

            "Esta ditadura do proletariado veio para ficar. Em processo de extinção uma ova! E o proletariado, onde é que está no poder?"

            Por mais de uma vez Tarquínio recorreu ao Estado e à Revolução de Wladimir Lênin, conseguindo neutralizar o circuito estragado que introduzia indagações tão inadmissíveis. Naquela época, eram apenas pequenos lampejos de dúvida, descuidos ideológicos; ainda não existiam as fotografias atrevidas e desbocadas, provocadoras de questões que dialética nenhuma lhe dava respostas. Era um alívio poder recuperar a firmeza ideológica. Durou uns bons anos aquela convicção alentadora, aquela confiança sem limite de que estávamos presenciando os últimos estertores do capitalismo, a crise final definitiva. Soara o sino, conforme dizia o líder bolchevista, para varrer de vez a burguesia da face da Terra. Um clamor bíblico, certo, como dois e dois são quatro, a ditadura do proletariado, único caminho para destruir a opressão e abrir o caminho para o fim de todas as ditaduras. Durou uns bons anos a certeza acalentadora. Durou até a horrível manhã de maio de 68, quando Tarquínio teve aquela visão descabelada em meio a toda a agitação da época. Horrível mesmo! A partir daí os quadros começaram a se mover nas paredes e a vida de Tarquínio tomou outro rumo.

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